Universo

O Poder Presciente da Matemática

Por que a matemática é uma ferramenta tão efetiva para descrever o modo como o mundo físico funciona? Muitas pessoas vêem isto como um mistério profundo e referem-se à “eficiência irracional” da matemática em descrever o Universo conhecido. Mas Bruno Augenstein, do RAND, em Santa Mônica, Califórnia, inverteu este argumento. Ele diz que a verdade é que os físicos são capazes de achar uma contraparte no mundo real para qualquer conceito matemático, e sugere que físicos espertos “deveriam ser aconselhados a procurar de forma “deliberada e habitual” modelos físicos de estruturas matemáticas já descobertas”.

Uma pessoa que pode ter se beneficiado de tal conselho foi Albert Einstein. Ele chegou à sua teoria geral da relatividade em 1915 por um caminho tortuoso. Mas uma segunda olhada revela que sua descrição matemática da forma como o espaço-tempo se curva e dobra na presença de matéria é precisamente equivalente às equações desenvolvidas por matemáticos do século XIX para descrever geometrias hipotéticas alternativas à familiar geometria Euclidiana de planos (ver New Scientist, 2 de janeiro de 1993, “Pay Attention Albert Einstein”). Augenstein cita isto como um exemplo onde um trabalho em matemática pura parece ter antecipado uma constatação subseqüentemente achada na teoria física — e ele encontrou um exemplo ainda mais dramático deste processo.

Em 1924, dois matemáticos publicaram um documento relativo ao que Augenstein chama “um ramo um pouco surrealista da teoria dos conjuntos”, denominado os Teoremas de Banach-Tarski (BTT) em honra deles (S. Banach e A. Tarski, Fundamenta Mathematica, vol 6 p 244). BTT é uma derivação totalmente bizarra da matemática que envolve o que é conhecido como decomposição. Deixando a matemática de lado e expressando alguns dos resultados fundamentais em termos vívidos, Augenstein diz que é possível provar matematicamente que “você pode cortar um corpo sólido A, de qualquer tamanho finito e forma arbitrária, em um número m de pedaços que, sem qualquer alteração, podem ser reagrupados em um corpo sólido B, também de qualquer tamanho finito e forma arbitrária”. [NdoT: Isso não é um erro de tradução. Banach e Tarski realmente demonstraram que um sólido pode ser decomposto e reagrupado para formar qualquer outro sólido arbitrário, desde que ambos sejam finitos. E isso não se refere apenas à superfície dos sólidos mas também ao seu volume. Chamado também de paradoxo de Banach-Tarski, a prova do teorema deriva do axioma de escolha. Desta forma, em tese é possível cortar uma bola de tênis e reagrupar as peças em uma esfera do tamanho do Sol. “Basta” para isso que a matéria seja infinitamente divisível.]

Surreal de fato — mas tão geral que é de pouco valor prático. Assim ele tomou uma versão específica deste comportamento que lida com esferas sólidas. Em particular, uma esfera sólida com raio unitário pode ser cortada em cinco pedaços de tal forma que dois dos pedaços podem ser reagrupados em uma esfera sólida com raio unitário, enquanto os outros três pedaços são reagrupados em uma segunda esfera sólida com raio unitário. Estes são os números mínimos de pedaços exigidos para fazer o truque, mas ele pode ser repetido indefinidamente — e talvez os leitores familiares com a física de partículas moderna possam adivinhar o que vem a seguir. Em um trabalho que será publicado em Speculations in Science and Technology [Especulações em Ciência e Tecnologia] (o qual, apesar do título, é um jornal científico sério), Augenstein mostra que as regras que governam o comportamento destes conjuntos e sub-conjuntos matemáticos são formalmente exatamente as mesmas que as regras que descrevem o comportamento de quarks e “glúons” no modelo padrão de física de partículas, a cromodinâmica quântica (QCD), que foi desenvolvida nos anos setenta.

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A QCD foi desenvolvida meio século depois que o documento BTT original apareceu, mas os físicos que desenvolveram o modelo padrão não conheciam nada sobre aquela parte surreal da teoria dos conjuntos. Nêutrons e prótons, neste modelo, são compostos de trios de quarks, e os glúons que ligam prótons e nêutrons juntos (equivalentes a fótons na teoria de campo eletromagnética) são feitos de pares de quarks. O modo mágico no qual um próton entrando em um alvo de metal pode produzir um enxame de cópias novas de prótons que emergem daquele alvo, cada um idêntico ao próton original, é descrito precisamente pelo processo BTT de cortar esferas em pedaços e os reagrupar para fazer pares de esferas. A BTT é descrita como “o resultado mais surpreendente da matemática teórica”, uma visão que Augenstein endossa. Mas o que tudo isso nos conta sobre a visão de mundo dos físicos? Quão “reais” são entidades como os quarks, e até que ponto eles devem ser considerados simplesmente como modelos artificiais e analogias para nos ajudar a entender o incompreensível mundo subatômico? Andrew Pickering, da Universidade de Edimburgo, argumentou que os físicos são sempre capazes de produzir modelos de como o mundo funciona, dado qualquer conjunto auto-consistente de dados experimentais, e que estes modelos sempre refletem a cultura de sua época.

“Não há dificuldade”, ele diz, “para que os cientistas produzam relatos do mundo que acham compreensíveis; dados seus recursos culturais só uma incompetência singular poderia ter evitado que os membros da comunidade [de física de partículas] produzissem uma versão compreensível da realidade a qualquer ponto de sua história” (Constructing Quarks, Edinburgh UP, 1984. p 413). E, ele continua, “dado seu extenso treinamento em técnicas matemáticas sofisticadas, a preponderância da matemática nas descrições da realidade por físicos de partículas não é mais difícil de explicar que a preferência de grupos étnicos por seus respectivos idiomas nativos”. Tudo isto vai contra o modo como a maioria dos físicos considera seu ramo, que eles vêem como um processo de descobrir verdades reais sobre o Universo que existem independentemente dos físicos terem ou não as descoberto. É um pensamento perturbador para a maioria dos físicos que toda sua visão de mundo possa ser não mais que uma história Kiplingesca “porque é assim” que fornece uma série de analogias e modelos que nos permitem pensar que entendemos o que acontece dentro de um átomo, mas que são mais um produto de nossas experiências e crenças culturais do que uma indicação de uma realidade subjacente que existe independentemente da sondagem de físicos.

Mas se Augenstein e Pickering tiverem razão, talvez este seja o modo pelo qual deveríamos considerar o mundo. “BTT”, diz Augenstein, pode “esclarecer outras grandes questões sobre cognição e aprendizado — como nós desenvolvemos visões do espaço físico, como nós manipulamos internamente o mundo externo e construímos modelos dele [e] como nós formamos e modificamos convicções”. Nada mal para um ramo obscuro da matemática de 70 anos de idade. Aceitar o irrealismo de quarks pode ser um preço pequeno a pagar por tal compreensão de nós mesmos.

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